sexta-feira, 25 de março de 2016

Como tudo apareceu...

reprodução da primeira página do manuscrito de «Aparição»
Foi sem dúvida (ainda o é) o romance mais lido, discutido, estudado e editado, de toda a obra de Vergílio Ferreira: «Aparição». A ida para Évora, onde leccionou, marcou-o. E ao fim de catorze anos no Liceu da cidade, deixou escrita essa experiência, esse conhecimento do Alentejo e foi para Lisboa. Meses depois de ter escrito o livro é que foi publicado. Corria o ano de 1959. Há muito que se tem escrito sobre «Aparição», sobre o valor do livro para a cidade alentejana e a importância de que fique eterna essa marca. Neste ano de centenário do nascimento, pode-se pelo menos ver a obra, ela própria, em painéis com a reprodução do original manuscrito. Amanhã, é o último dia para ver no Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta, em Gouveia, a exposição «Vergílio Ferreira - Os Caminhos da Escrita ou O Fascínio da Arte», inserida no ciclo de actividades comemorativas do centenário do nascimento do escritor Vergílio Ferreira.

Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora. Nos meus membros espessos, no crâneo embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem. Um moço de fretes abeirou-se de mim, ergue a pala do boné:
– É preciso alguma coisa, senhor engenheiro?
Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda um caixote de livros a desembarcar.
– Então é dar-me a senhazinha, senhor engenheiro.
– Mas não me trate por engenheiro. Sou professor do Liceu.
Com passinhos curtos, anda dobrado, como se tivesse dores de bexiga. A cara e os olhos, são vermelhos, ensopados em sangue. Carrega tudo aos ombros com uma complicação de cordéis, promete-me uma pensão muito boa, mesmo na Praça, «que é já ali», e convida-me a segui-lo com os seus olhos lastimosos de aguardente. Está uma manhã bonita, com um sol íntimo dourando o ar, um vento leve da planície, fresco de orvalhos. À minha frente, o moço de fretes, agachado sobre si, vai dançando um estranho ritmo de arame, com os seus passos saltitados. Mal o olho. Trago em mim um pesadelo de ideias, um cansaço profundo que me alaga, me submerge. A Praça ainda é longe, e não «já ali», como me garantira o moço. Mas a angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo de fazer, tornam-me estranho nesta cidade branca, separaram-ma dos meus olhos vazios. Venho de luto. O meu pai morreu. Que têm que fazer, em face da minha dor, da minha alucinação, estas árvores matinais da avenida que percorro, a branca aparição desta cidade-ermida?
– Estamos quase, senhor engenheiro.

Aparição
Vergílio Ferreira
Bertrand, 16ªed, 1983

1 comentário:

  1. " A Praça ainda é longe, e não «já ali», como me garantira o moço. " - A dificuldade de começar a perceber como funciona um alentejano :)

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