segunda-feira, 14 de março de 2016

...a planície é para a tragédia


17-Dezembro [1980] (quarta). Hoje foi um dia de retorno ao passado. Remexendo papéis velhos, encontro um número do «Jornal de Évora» (de 12/7/59) em que vem a minha despedida da cidade. Diz assim:

SAUDAÇÃO
Vim para Évora «provisoriamente», quase com o propósito de não desfazer as malas, convicto de uma breve estada. Mas a convicção malogrou-se e aqui estive catorze anos - o período mais longo da minha vida. Pequena para os outros, e com razão, a importância desse período é muito grande para mim. Nos volumes aqui escritos, nos artigos, nas cartas aos amigos, ignoro a extensão da presença do Alentejo. Vim do Norte, da montanha, da água e da verdura: a extraordinária individualidade da planície resiste longamente a quem a ignora. Mas, por fim, não me foi difícil perceber que a linguagem da Serra se reconhece de algum modo na da planura: é a linguagem da força cósmica, da desolação, do silêncio. Se a montanha apela mais para a epopeia e a planície para a tragédia, tragédia e epopeia têm um signo comum que o lirismo desconhece. Assim, eu não tive talvez de me reinventar totalmente para me reconhecer aqui; e a presença do Alentejo, no que me exprimiu, creio bem que se reconhecerá sem dificuldade. 

Conta-Corrente 3
Vergílio Ferreira
Bertrand, 1983

(fotografia de Maria Olívia Santos)

1 comentário:

  1. Extraordinário. As palavras são escolhidas de uma forma que só podem tremendamente sentidas. Como as compreendo! Como entram por mim adentro... e me saem pelos olhos...

    "... a linguagem da Serra se reconhece de algum modo na da planura: é a linguagem da força cósmica, da desolação, do silêncio. "

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