1 Maio [1981] (sexta). Ser-se honesto em política, ou seja, ser-se coerente é uma aberração - não falei já disto? Sou um subdesenvolvido, de modo que ainda não entendi. Tenho uma folha corrida não muito brilhante, mas sem nódoas que me medalhem o comportamento em negativo. Por exemplo: recusei um prémio (50 c.) do SNI ou coisa assim. recusei uma viagem a Angola num rancho comandado pelo Hernâni Cidade e fui substituído por quem não sofreu nada com isso. Recusei uma viagem ao Brasil (que era paga pelo cônsul ou Ministério dos fachos). Recusei um «ajeitamento» para sair de Évora e lá fiquei catorze anos. Tive livros apreendidos pela Censura e vários artigos cortados. Recusei cargos, desde a organização dos pontos de exames. Etc. Que é que me valeu? Mas vários tipos vindos da glória fascista aderiram ao PC e obtiveram assim que lhes não ocupassem casas, expropriassem os latifúndios, fossem achincalhados na Imprensa, perdessem o privilégio de se saracotearem na alta-roda política. Que é que perderam com o cadastro de fachos? O que importa é ser-se honesto mas tomarem o comboio da História à hora própria. Recordo uma criatura que só por acaso não foi deputada da Assembleia do Caetano: nunca ninguém a molestou por isso - certo hebdomadário progressista faz mesmo gala em queimar-lhe incenso. Não é ser honesto que interessa - o que interessa é não se ser trouxa. Trago a trouxice nos cromossomas, só já no Paraíso terei a recompensa. mas como não acredito nele, vão-me obviamente deixar na rua. Que merda, hem?
Conta-corrente 3
Vergílio Ferreira
Bertrand, 1983